
Com o tranco, a cabeça girou totalmente para trás como se não tivesse eixo, o corpo ameaçou despencar. Um dos braços caiu no chão com um estalo oco. A noite começava a abraçar a cidade, mas a claridade nonsense do branco rosado iluminando a cena bizarra chamou a atenção de Otavio, que acabara de estacionar naquela rua de muito trânsito mas poucos pedestres àquela hora.
O embate daqueles dois corpos durou um tempão e a cena, bastante sensual fez Otavio esquecer-se da pressa e do compromisso e permanecer sentado ao volante para apreciar a cena. Ele, tão acostumado a consertar ossos e esqueletos, ortopedista que era, encantou-se com essa outra forma de lidar com o corpo humano. A balconista de pernas tão longas quanto o manequim sofria para mudar o figurino e deixar a vitrine pronta para o dia seguinte. Era excitante ver a garota magra roçando as ancas com a boneca angulosa na tentativa de recolocar o braço caído, abrir um zíper, puxar as mangas, tirar-lhe o vestido. Agora totalmente nu, ela começou a cobri-lo outra vez. Ajeitava a nova roupa, cobria um seio, subia a barra expondo as coxas, alisava a cintura. Parecia quase um balé, mais um carinho meio desajeitado. Demorou, mas logo o manequim estava totalmente renovado, membros e cabeça no lugar, quadris tortos e empinados, numa daquelas estranhas posições de vitrine. Esquecido do tempo, meio excitado e divagante, ele viu a garota satisfeita com o resultado, abaixar-se junto à parede para apagar o refletor que jogava a luz rosa de baixo para cima e carregar as peças que substituíra para dentro.
A rua ficou ainda mais escura quando a vitrine se apagou, mas uma luz tênue vinda lá do fundo permitia que um observador mais atento acompanhasse vagamente o que acontecia no interior da boutique. Concentrando o foco, segundos depois Otavio viu a vendedora sair do provador vestindo a roupa que tirara do manequim e, com jeito feliz, dar pulinhos de alegria admirando-se de longe no espelho. Mesmo naquela semidistância ele estava certo: o vestido de um azul royal intenso caía muito melhor na garota pernuda do que na boneca sem vida. Ela desfilava para alguém. Logo o médico constatou que era para a gerente da loja, mulher de tipo encorpado e seios fartos que parecia elogiar o conjunto da obra, alisando o modelo e a modelo, e esta demonstrava gostar dos afagos. Segundos depois ela colava seu corpanzil ao da jovem num abraço apertado, iniciando um erótico jogo de ancas, um abaixa-levanta meio desastrado que as fez caminhar enlaçadas e trôpegas até a lateral da loja, numa área menos iluminada.
Agoniado, Otavio saiu do carro, e sem se preocupar se estava sendo visto, aproximou-se da vitrine e, riscando o olhar pela penumbra, localizou a garota apoiada no balcão e a gerente com o rosto enfiado entre as suas pernas. A jovem revirava a cabeça, e de vez em quando olhava para ver o que a outra estava fazendo, e parecia delirar. Quando parecia que havia terminado, elas voltaram a se abraçar, e a garota começou a retribuir toda a sequencia.
Aquilo pareceu a ele durar uma eternidade. De repente Otavio sentiu o celular vibrar em seu bolso.
– Oi, mano, já pegou a Fernanda? Tá todo mundo aqui esperando vocês.
– Não peguei não – respondeu o médico enquanto tentava reordenar os pensamentos.
– O que foi, está preso no trânsito?
– Não, tá tudo livre, em poucos minutos eu chego. Mas a Fernanda teve um contratempo e não poderá ir.
– Puts, melou a surpresa então. Você vai ter que adiar o pedido…
– É, melou.