Um gosto brando de ternura

(Resenha)

Lilia Guerra poderia ser chamada de especialista das quebradas, e muitas vezes é apresentada assim. Mas essa autora é mais que isso. É como uma soprano, que modula na voz o pranto, a raiva, a revolta sem esquecer a doçura, o bom humor e a esperança.

Moradora de Cidade Tiradentes, auxiliar de enfermagem por profissão, difícil imaginar como Lilia encontra tempo para uma produção que vem se revelando tão consistente. Depois de algumas tímidas autopublicações, em 2018 ela se lançou no mercado via a Editora Patuá, com o celebrado Perifobia (livro de contos em que os personagens se misturam, já mostrando que estava no caminho da narrativa longa). Depois vieram os romances A Rua do Larguinho e o Amor Avenida (todos pela Patuá). E agora, primavera de 2023, ela vem com o O Céu para os Bastardos, pela Editora Todavia.

O céu para os bastardos aborda temas como solidão, pobreza, violência, força, amizade, amores, orgulho e resistência em uma história que se passa em Fim-do-Mundo, o bairro periférico criado pela autora em um rico painel da sociedade brasileira. Na voz da narradora, a Sá Narinha, a história de uma empregada doméstica que serve a uma viúva da elite branca, e que se tornou mãe solteira sem nunca ter ansiado pela maternidade, e depois tem que lidar com todas as suas consequências.  

Abordando temas como as dificuldades de transporte, saúde, filhos, a proximidade sempre perigosa com as drogas e os descaminhos, a autora segue o seu estilo de nos apresentar uma grande gama de personagens, tantos que poderiam até confundir o leitor. Mas isso não acontece, porque a autora garante que cada um deles tem sua trilha sonora, e em geral no universo do samba, e talvez por isso eles nos cativem tanto.

A certa altura do livro, Sá Narinha reflete “Como se a vida fosse um rascunho e pudesse ser reescrita”. Não, o passado não pode ser mudado, mas com escritoras como Lilia Guerra quem sabe o futuro ainda possa ser modificado para melhor, se o apartheid brasileiro passar a ser admitido e combatido.   

Link para quem quiser saber mais da autora, uma entrevista com ela:   https://www.escrevendoofuturo.org.br/blog/literatura-em-movimento/perifobia-a-periferia-e-sempre-mais-distante/